Palavra do Dia por Priberam

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Digressão sobre o sentido do tempo.


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Digressão sobre o sentido do tempo.
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E grande satisfação invadia a alma de Hans Castorp, ao pensar nas duas horas vazias, cheias de paz assegurada, que tinha à sua frente, essas horas sagradas que o regulamento da casa destinava ao repouso principal, e que ele, apesar de ser um simples visitante, aprovava como uma instituição inteiramente adequada ao seu caráter. Pois Hans Castorp era paciente por natureza, e bem capaz de passar muito tempo sem nada fazer. Conforme nos recordamos, adorava esse lazer que nenhuma atividade atordoadora ousa obliterar, consumir, afugentar. Às quatro horas iria tomar o chá da tarde, com bolo e confeitos; depois haveria um novo repouso na espreguiçadeira; às sete, vinha o jantar, que, como todas as refeições, ofereceria algumas sensações e certos aspectos curiosos, dignos de serem aguardados com prazer; depois, alguns olhares no interior da caixa estereoscópica, no caleidoscópio em forma de luneta, e no tambor cinematográfico... Hans Castorp já sabia de cor o programa do dia, ainda que fosse exagero dizer que já se “aclimatara” perfeitamente.
No fundo constitui fenômeno esquisito esse processo de aclimatação num lugar estranho, a adaptação – por mais laboriosa que seja – e a mudança de hábitos à qual as pessoas se submetem só para variar e na intenção firme de abandoná-la imediatamente ou pouco depois de completada, a fim de voltarem ao estado anterior. Intercala-se tal processo como uma espécie de interrupção ou entreato, no curso principal da vida, e isso para fins de “restabelecimento”, quer dizer, para exercitar, renovar e revolucionar o organismo que corria perigo, e já estava a ponto de se amimalhar, de enlanguescer e de entibiar, na desarticulada monotonia da existência rotineira. Mas, qual é a origem desse langor, dessa tibieza, nos casos de continuidade por demais extensa e ininterrupta de uma rotina? Trata-se menos do cansaço e do desgaste físico e espiritual, que causam as exigências da vida – para eles, o simples descanso bastaria como remédio reconstituinte –, do que de algo psíquico: é a consciência do tempo que ameaça perder-se na uniformidade constante, e que liga laços tão estreitos de parentesco e afinidade à própria sensação de vida, que não se pode debilitar uma sem que a outra sofra e definhe também. Com respeito à natureza do tédio encontram-se frequentemente conceitos errôneos. Crê-se em geral que a novidade e o caráter interessante do conteúdo “fazem passar” o tempo, quer dizer, abreviam-no, ao passo que a monotonia e a vacuidade lhe estorvam e retardam o fluxo. Isto não é verdade, senão com certas restrições. Pode ser que a vacuidade e a monotonia alarguem e tornem “tediosos” o momento e a hora; porém, as grandes quantidades de tempo são por elas abreviadas e aceleradas, a ponto de se tornarem um quase nada. Um conteúdo rico e interessante é, por outro lado, capaz de abreviar a hora e até mesmo o dia; mas, considerado sob o ponto de vista do conjunto, confere amplitude, peso e solidez ao curso do tempo, de maneira que os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo vento e se vão voando. O que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos. O hábito representa a madorra, ou ao menos o enfraquecimento, do senso de tempo, e o fato de os anos de infância serem vividos mais vagarosamente, ao passo que a vida posterior se desenrola e foge cada vez mais depressa – esse fato também se baseia no hábito. Sabemos perfeitamente que a intercalação de mudanças de hábitos, ou de hábitos novos, constitui o único meio para manter a nossa vida, para refrescar a nossa sensação de tempo, para obter um rejuvenescimento, um esforço, um retardamento da nossa experiência do tempo, e com isso, a renovação da nossa sensação de vida em geral. Tal é a finalidade da mudança de lugar e de clima, da viagem de recreio, e nisso reside o que há de salutar na variação e no episódico. Os primeiros dias num ambiente novo têm um curso juvenil, quer dizer, vigoroso e amplo. Isto se aplica a uns seis ou oito dias. Depois, na medida em que a pessoa se “aclimata”, começa a sentir uma progressiva abreviação: quem se apega à vida, ou melhor, quem gostaria de fazê-lo, talvez note com horror como os dias voltam a tornar-se leves e começam a deslizar voando; e a última semana – de quatro, por exemplo – é de uma rapidez e fugacidade inquietante. Verdade é que a vitalização do nosso senso de tempo produz efeitos além do interlúdio, fazendo-se valer ainda quando a pessoa já voltou à rotina; os primeiros dias que passamos em casa, depois da variação, se nos afiguram também novos, amplos e juvenis; mas esses são somente uns poucos, já que a gente se reacostuma mais rapidamente à rotina do que à sua suspensão. E o senso de tempo de quem já está fatigado, em virtude da idade, ou nunca o possui desenvolvido em alto grau – o que é sinal de pouca força vital –, volta a adormecer muito depressa, e já ao cabo de vinte e quatro horas é como se tal pessoa jamais se tivesse afastado do seu ambiente habitual, e a viagem não passasse do sonho de uma noite.
Inserimos aqui essas observações porque o jovem Hans Castorp tinha em mente ideias análogas, quando, depois de alguns dias, disse ao primo, fixando nele os olhos estriados de sangue:
– É mesmo curioso como o tempo, no começo, parece longo a quem se encontra num lugar estranho. Quer dizer... Absolutamente não me aborreço; nada disso! Ao contrário, posso afirmar que me divirto esplendidamente. Mas quando olho para trás – em retrospectiva, sabe? – tenho a impressão de estar aqui há não sei quanto tempo já. E de agora até aquele momento em que cheguei a Davos-Dorf e não compreendi que já estava no fim da minha viagem e você me disse: “Pode descer” – lembra-se ainda? –, isto me parece toda uma eternidade. Essas coisas nada têm a ver com medidas e raciocínios. São puramente questão de sentimentos. Claro que seria tolice dizer: “Tenho a impressão de estar aqui há dois meses”; isto seria um absurdo. Só posso dizer: “Há muito tempo já”.
– Pois é – disse Joachim, com o termômetro na boca. – Eu também me aproveito disso. De certo modo, posso me segurar em você, desde que está aqui. – E Hans Castorp riu-se de que o primo dissesse isso assim tão simplesmente, sem acrescentar nenhuma explicação.
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A Montanha Mágica – por Thomas Mann
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Fulvio Machado Faria

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