Palavra do Dia por Priberam

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

ALUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO




"Quando aquele homem achou-se naquele rochedo debaixo daquela nuvem, no meio daquela Água, longe do contato humano, deixado por morto, sozinho entre o mar que subia e a noite que descia, teve profundo júbilo.
Alcançara o que queria.
Realizara-se-lhe o sonho. Estava paga a letra de longo prazo que ele sacou sobre o destino.
Para ele, ficar abandonado, era ficar livre. Estava no Hanois, a 1 milha de terra; tinha 75.000 francos. Nunca se realizou mais acertado naufrágio. Nada falhou; É verdade que tudo estava previsto. Desde a juventude, Clubin teve uma idéia; fazer da honestidade uma parada no jogo da roleta da vida, passar por homem probo, e partir daí, esperando que a sorte corresse; não apalpar, segurar; fazer um lance, mas só um, agarrar tudo, e deixar atrás os papalvos. Assentava que devia alcançar de uma vez aquilo que os larápios tolos deixam de agarrar vinte vezes, e, enquanto estes vão ter à forca, ele iria à fortuna. O encontro de Rantaine foi o raio de luz. Construiu imediatamente o plano: obrigar Rantaine à restituição; quanto às suas revelações possíveis, anulá-las desaparecendo; passar por morto, que É a melhor desaparição do mundo; para isso fazer naufragar a Durande. O naufrágio era necessário. Além de tudo, ir-se embora deixando boa fama, era fazer da sua existência uma obra-prima. Quem pudesse ver Clubin naquele naufrágio acreditaria ver um demônio feliz.
Viveu toda a sua vida naquele minuto.
Toda a sua pessoa exprimia esta palavra: enfim! Tremenda serenidade empalideceu aquela fronte obscura. Os olhos embaciados, no fundo dos quais parecia haver um tabique, tornaram-se profundos e terríveis. O abrasamento interno daquela alma reverberou-se neles.
O foro íntimo, como a natureza externa, tem a sua tensão elástica. Uma idéia É um meteoro; no momento do triunfo, entreabrem-se as meditações acumuladas que o preparam, e jorra uma faísca; ter em si uma garra do mal, e sentir nela uma presa, ventura É esta que tem a sua irradiação; mau pensamento que triunfa e ilumina o rosto daquele que o concebeu; certas combinações triunfantes, certos desejos realizados, certas felicidades ferozes fazem aparecer e desaparecer nos olhos dos homens lúgubres e luminosas dilatações. É a tempestade jubilosa, É a aurora ameaçadora. Tudo isso sai da consciência, que se faz sombria e enevoada.
Foi esse fulgor que iluminou aqueles olhos.
Relâmpago que não se parecia com coisa alguma do que se pode ver no céu e na terra.
O velhaco comprimido que havia em Clubin fez explosão.
Clubin fitou a imensa obscuridade, e não pode reter uma gargalhada baixa e sinistra.
Estava livre! Estava rico!
Achara a incógnita. Resolvera o problema.
Clubin tinha tempo de cuidar de si. A maré enchia e por conseguinte sustentava a Durande e afinal devia pô-la a nado. Mas o navio aderia solidamente ao rochedo; não havia perigo de soçobrar. Além disso, era preciso deixar à chalupa o tempo de afastar-se, perder-se talvez; Clubin contava com isso.
De pé sobre a Durande naufragada, cruzou os braços, saboreando aquele abandono nas trevas.
A hipocrisia pesou àquele homem durante trinta anos. Era o mal, e consorciou-se com a probidade. Odiava a virtude com um ódio de mal casado. Teve sempre uma premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquela armadura rígida, a aparência. Era monstro internamente; vivia em uma pele de homem de bem, com um coração de bandido. Era o pirata ameno. Era prisioneiro da honestidade, estava fechado naquele caixão de múmia, a inocência; tinha nas costas asas de anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe demais a estima pública. Passar por homem honrado É duro! Manter constante equilíbrio, pensar mal e falar bem, que labutação! Clubin era o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime. Este contra-senso foi o destino dele. Era-lhe preciso mostrar ares apresentáveis, escumar por baixo do nível, sorrir em vez de ranger. A virtude, para ele, era coisa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquela mão que lhe tapava a boca.
E querendo morde-la foi obrigado a beijá-la.
Ter mentido É ter sofrido. O hipócrita É um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, É uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, por açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva É coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. HÁ um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. O traidor não É mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita É um titã-anão.
Clubin imaginava de boa fé que tinha sido oprimido. Por que razão não nascera rico? O que ele queria era que os pais lhe houvessem deixado 100.000 libras de renda. Por que não as tinha? Não era culpa dele. Por que motivo, não lhe dando todos os gozos da vida, forçaram-no a trabalhar, isto é, a enganar, a trair, a destruir? Por que motivo condenaram-no assim a essa tortura de adular, de rastejar, de comprazer, de fazer-se amar e respeitar, e trazer dia e noite no rosto um rosto que não era dele? Dissimular É uma violência imposta. Odeia-se diante de quem se mente. Soara enfim a hora. Clubin vingava-se.
De quem? De todos e de tudo.
Lethierry não lhe fez senão bem: queixava-se demais; vingava-se de Lethierry.
Vingava-se de todos aqueles ante quem foi obrigado a constranger-se. Desforrava-se. Quem quer que pensasse bem dele, era seu inimigo, porque ele foi cativo desse homem.
Clubin achava-se livre. Realizava-se a fuga. Estava fora dos homens. o que se tinha por morte, era vida; ele ia começar agora. O verdadeiro Clubin despojava-se do falso Clubin. De um lance dissolveu tudo. Empurrou, com o pé, Rantaine ao espaço, Lethierry à ruína, a justiça humana às trevas, a opinião ao erro, a humanidade inteira para longe de si. Tinha eliminado o mundo.
Quanto a Deus, Clubin curava pouco dessa palavra de quatro letras.
Passou como religioso. Que importa?
HÁ cavernas no hipócrita ou, antes, o hipócrita É uma caverna.
Quando Clubin ficou só, abriu-se-lhe o antro. Teve um instante de delícias; arejou a alma.
Respirou largamente o seu crime.
O fundo do mal tornou-se visível naquele rosto. Clubin abriu-se. Nesse momento o olhar de Rantaine ao pé daqueles olhos pareceria um olhar de recém-nascido.
Arrancar a máscara, que livramento! A consciência de Clubin alegrou-se por ver-se hediondamente nua, e por tomar livremente um banho ignóbil no mal. o constrangimento de um longo respeito humano acaba por inspirar um gesto violento à impudência. Chega-se a uma certa lascívia na perversidade. Existe nessas tremendas profundezas morais tão pouco sondadas uma não sei que ostentação atroz e agradável, que É a obscenidade do crime. A insipidez da falsa reputação dá apetite de vergonha. Desdenham-se os homens a ponto tal que se deseja o desprezo deles. Ser estimado aborrece. Admira-se a franqueza da degradação. Olha-se cobiçosamente a torpeza que se mostra tão a seu gesto na ignomínia. Os olhos obrigados a baixar-se tem muitas vezes destes olhares oblíquos. Nada se aproxima tanto de Messalina como Maria Alacoque. Vede CadiŁre e a religiosa de Louviers.
Clubin vivera debaixo do véu. O descaramento foi sempre a sua ambição. Invejava a mulher pública e a fronte de bronze do o próbrio aceito; sentia-se mais mulher pública do que ela e tinha desgosto em passar por virgem. Foi o Tântalo do cinismo. Enfim, naquela solidão, podia ser franco; era-o. Que volúpia não É sentir-se sinceramente abominável! Todo o êxtase possível no inferno teve-os Clubin naquele momento; foram-lhe pagos todos os atrasados da dissimulação; a hipocrisia É um adiantamento; Satanás embolsou-o, Clubin embriagou-se de desfaçamento, pois que os homens tinham desaparecido e apenas ficara o céu. Disse consigo: “Sou um pícaro!” E ficou satisfeito.
Jamais houve coisa igual em uma consciência humana.
Erupção de um hipócrita, não há rompimento de cratera igual a esse.
Achava-se feliz por não haver ali ninguém, e não desgostaria que alguém o visse. Teria prazer em ser medonho à vista de uma testemunha.
Teria prazer em dizer ao gênero humano: És idiota!
A ausência de homens assegurava-lhe o triunfo, mas diminuía-o.
Só ele era o espectador da sua glória.
Há certo encanto em estar de golilha. Toda a gente vê que és infame.
Obrigar a multidão a examinar-te É reconhecer a tua força. Um galé sobre um estrado, com uma coleira de ferro ao pescoço, é o déspota de todos os olhares que ele obriga a voltarem-se para si. Aquele cadafalso é ao mesmo tempo pedestal. Que mais belo triunfo do que esse de ficar no centro de convergência para a atenção geral? Obrigar o olhar público É uma das formas de supremacia. Os que tem o mal por ideal acham no opróbrio uma auréola. Domina-se daí. Olha-se de cima de alguma coisa. Mostra-se com soberania. Um poste, à vista de todo o universo, tem alguma analogia com um trono.
Estar exposto É ser contemplado.
Um mau reinado tem evidentemente júbilos do pelourinho. Nero incendiando Roma, Luis XÕV tomando traiçoeiramente o Palatinado, o Regente Jorge matando lentamente Napoleão, Nicolau assassinando a Polônia em face da civilização, deviam sentir um pouco daquela volúpia sonhada por Clubin. A imensidade do desprezo parece grandeza ao desprezado.
Ser desmascarado É uma derrota, mas desmascarar-se É uma vitória. É a ebriedade, É a imprudência insolente e satisfeita, É uma nudez transportada que insulta tudo diante de si. Suprema felicidade.
Estas idéias em um hipócrita parecem contradição, e não são. Toda a infâmia É conseqüente. O mel É fel. Escobar confina no Marques de Sade. Prova: Léotade. O hipócrita, sendo perverso completo, tem em si os dois pólos da perversidade. De um lado É padre, do outro cortesão. O seu sexo de demônio É duplo. O hipócrita É o horrível hermafrodita do mal. Fecunda-se a si próprio; gera-se, transforma-se. Queres vê-lo formoso? Olha-o. Queres vê-lo horrível? Vira-o.
Clubin tinha em si toda esta sombra de idéias confusas. Pouco as percebia, mas gozava-as muito.
Uma porção de faíscas do inferno, atravessando a noite, era a sucessão dos pensamentos naquela alma.
Clubin conservou-se pensativo algum tempo; olhava para a sua honestidade com o ar com que a serpente contempla a pele que despiu.
Toda a gente acreditou naquela honestidade, ele próprio acreditou um bocadinho nela.
Deu segunda gargalhada.
Iam pensar que ele estava morto, e estava vivo.
Pensavam que estava perdido, e estava salvo. Que boa caçoada à tolice universal!
E nessa tolice universal contava-se Rantaine. Clubin pensava em Rantaine com um desdém sem limites. Desdém da fuinha para com um tigre. Tinha conseguido o que falhara a Rantaine. Rantaine retirara-se enfiado, e Clubin triunfante. Tomou o lugar de Rantaine no leito da sua má ação, e foi ele quem teve a boa fortuna.
Quanto ao futuro, Clubin não tinha plano. Possuía os bilhetes do banco na boceta de ferro atada à cintura; bastava-lhe esta certeza. Mudaria de nome. Há países onde 60.000 francos valem 600.000. Não seria má solução ir para um desses lugares viver honestamente com o dinheiro apanhado ao ladrão Rantaine. Especular, entrar em um grande negócio, engrossar o capital, tornar-se seriamente milionário também não era mau.
Por exemplo, em Costa Rica, como era o começo do grande comércio do café, podia ganhar tonéis de ouro. Veria isso.
Demais, pouco importava. Clubin tinha tempo de pensar nessas coisas. O mais difícil estava feito. Despojar Rantaine, desaparecer com a Durande era o mais importante. Estava feito. O resto era simples. Não havia obstáculo possível. Nada a temer. Não podia acontecer nada. Nadaria para a costa, abordaria a Plainmont, de noite, galgaria as rochas da praia, iria à casa mal-assombrada, entraria facilmente por meio da corda de nós escondida de antemão no buraco do rochedo; acharia na casa a mala contendo roupa e víveres, dentro de oito dias lá estavam os contrabandistas da Espanha, Blasquito provavelmente; por alguns guinéus, far-se-ia transportar, não a Tor Bay, como disse a Blasco para iludir, mas a Pasages ou a Bilbao. Daí iria a Vera Cruz ou a Nova Orleans. JÁ era tempo de atirar-se ao mar, a chalupa estava longe, uma hora a nado era coisa nenhuma para Clubin, só 1 milha o separava da terra, pois que estava no Hanois.
Neste ponto dos seus cálculos, rasgou-se uma fresta do nevoeiro. O formidável rochedo Douvres surgiu aos seus olhos."





Victor Hugo - Os Trabalhadores do Mar



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Fulvio Machado Faria

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